A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado de 11 jovens moradores da favela de Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, em 1990. O caso deu origem ao grupo de ativistas Mães de Acari. A sentença foi anunciada na quarta-feira (4) em San José, capital Costa Rica, sede da CIDH.
A corte internacional é uma instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos (OEA) que tem o objetivo de aplicar e interpretar a Convenção Americana – também chamada de Pacto de San José da Costa Rica – que consiste em um tratado internacional sobre direitos e liberdades. O Brasil é um dos 20 países que reconhecem a competência da CIDH.
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O caso que resultou na condenação do Estado brasileiro se trata do desaparecimento, em 26 de julho de 1990, dos 11 moradores de Acari que estavam em um sítio em Magé, município da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Por volta das 23h, um grupo de aproximadamente seis homens encapuzados entrou na casa da avó de uma das vítimas e sequestrou Wallace Souza do Nascimento, Hedio Nascimento, Luiz Henrique da Silva Euzébio, Viviane Rocha da Silva, Cristiane Leite de Souza, Moisés dos Santos Cruz, Edson de Souza Costa, Luiz Carlos Vasconcellos de Deus, Hoodson Silva de Oliveira, Rosana de Souza Santos e Antonio Carlos da Silva.
Os encapuzados disseram que eram agentes da polícia e exigiram dinheiro. Eles seriam integrantes dos “Cavalos Corredores”, um grupo de extermínio que operava na Favela de Acari e era composto por policiais.
Desde então, não se sabe o paradeiro deles. A CIDH destaca que os jovens eram negros. Oito dos desaparecidos eram adolescentes com idades entre 13 e 18 anos. Até hoje, a maioria das famílias não obteve o direito à emissão das certidões de óbito das vítimas.
Sentença
A Corte cita que um processo judicial aqui no Brasil foi arquivado em 10 de abril de 2011, diante da ausência de “suporte probatório mínimo”. A ação de reparação de danos materiais e morais movida por alguns familiares contra o Estado do Rio de Janeiro prescreveu.
A decisão também lembra que Edmea da Silva Euzébio, mãe de um dos desaparecidos e líder das Mães de Acari, foi assassinada em 1993, no Centro do Rio de Janeiro, pouco tempo depois de ter denunciado à Justiça a participação de policiais nos desaparecimentos. Uma sobrinha que estava com ela também foi morta.
As Mães de Acari ganharam notoriedade por cobrarem avanço nas investigações e responsabilização pelo crime. O movimento existe até hoje.
Em abril deste ano, os policiais acusados pelo crime foram absolvidos por falta de provas.
Os juízes da CIDH entenderam que o Estado brasileiro foi responsável pela “violação dos direitos ao reconhecimento à personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal” e que “não realizou investigação séria, objetiva e efetiva, dirigida à determinação da verdade”.
Reparações
O Estado foi condenado a medidas como continuar com a investigação do desaparecimento; efetuar uma busca rigorosa do paradeiro deles; realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional; criar no bairro de Acari um espaço de memória; proporcionar atendimento médico e psicológico adequado às famílias; reparação financeira às vítimas; além de elaborar um estudo sobre a atuação de milícias e grupos de extermínio no Rio de Janeiro.
Parentes
Para Rosangela da Silva, irmã da vítima, Luiz Henrique da Silva Euzébio, e filha de Edmea, a sentença trouxe o sentimento de renascimento do irmão. “Porque foram 34 anos sofrendo, correndo atrás, indo e voltando sem nenhuma solução. Hoje, a gente teve uma resposta positiva, mas tivemos que recorrer a um órgão de fora. Vamos seguir buscando justiça aqui no nosso país também”, disse.
Aline Leite de Souza é irmã de Cristiane, uma das vítimas. Na luta pela justiça, ela representa a “Mãe de Acari” Vera Lúcia Flores, já falecida.
“A gente esperava que não precisasse passar por tanto tempo”, disse ela à TV Brasil. Para Aline, a sentença é uma forma de o Brasil “reescrever essa história, dando dignidade essas famílias”.
Antes de chegar à CIDH, o caso passou pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, outro órgão da OEA, que determinou, em 2006, uma série de recomendações ao Estado brasileiro, que não foram cumpridas. Por isso, o caso foi levado à CIDH, instância superior, que iniciou o julgamento em outubro de 2023.
A sentença deve ser entregue à ministra dos Direitos Humanos e Cidadania, Macaé Evaristo dos Santos, na próxima semana.
Repercussão
A coordenadora-geral da ONG Criola, Lúcia Xavier, que acompanha o movimento Mães de Acari desde a fundação, classificou a decisão como “uma correção dos rumos da política do Estado contra violências desse tipo”.
“Além do reconhecimento da legislação do desaparecimento forçado, a decisão vai fortalecer uma política, não só de segurança pública, mas de cuidado, de saúde, de suporte aos familiares que viveram essa tragédia”, disse em comunicado divulgado pela ONG.
“Não podemos normalizar o desaparecimento forçado e, para romper com isso, o Estado brasileiro precisa pôr um ponto final nessas práticas tanto institucionalizadas, quanto aquelas realizadas por grupos armados como a milícia e o crime organizado”, completou Xavier.
O advogado Guilherme Pimentel, coordenador da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave), projeto da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, classifica a sentença da CIDH como um marco na luta pelos direitos humanos no Brasil. Ele destaca que “é um dos primeiros episódios de repercussão mundial de uma chacina no Rio”.
“Condenações como essa reafirmam o que os movimentos de mães e familiares já vêm falando há anos: as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos não são investigadas como deveriam, os casos são arquivados, e as famílias ficam sem o direito à verdade, memória, justiça e reparação. Sem esses direitos, não há Estado Democrático de Direito na prática”, disse à Agência Brasil.
Ele acrescenta que “mais uma vez fica demonstrado o quão fundamental é que o Brasil desenvolva mecanismos de controle externo e controle social das forças de segurança, de modo a não repetir episódios como esse”.
Governos
Em nota encaminhada à Agência Brasil, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) informou que participou do ato de notificação da sentença e classificou a decisão como “histórica”.
“O MDHC manifesta o seu compromisso em trabalhar para a implementação integral dessa decisão histórica, que simboliza um passo importante na luta contra a impunidade e na construção de um Brasil que respeite os direitos humanos de maneira plena”.
O ministério informou que a primeira ação prática para cumprimento da sentença será a publicação da decisão no site oficial da pasta.
A Secretaria estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro informou à Agência Brasil que, por meio da Coordenação de Justiça Internacional e Memória e Verdade, acompanha o caso da chacina de Acari desde o início, “dando todo suporte necessário para as famílias”.
“Entre as medidas adotadas está o atendimento realizado por uma equipe multidisciplinar composta por psicólogos, advogados e assistentes sociais. Também foi oferecido suporte para a correção e a obtenção da certidão de óbito dos vitimados, o que vem sendo alinhado com o Tribunal de Justiça, com a articulação da Coordenação de Pessoa Desaparecida”, afirma.
A secretaria informou ainda que elaborou uma proposta de regulamentação de lei estadual, que está em tramitação interna, para que seja possível proceder com o pagamento da indenização.
A Agência Brasil pediu comentários à Polícia Civil do Rio de Janeiro, responsável pelas investigações, e aguarda posicionamento.